O Mendigo – conto

O velho despertador fez “trriiimmmm” às sete e trinta da manhã, e assim que Bob ouviu o som estridente bateu, com a palma da mão, sobre o botão do relógio, e interrompeu o barulho. Ganhara a relíquia de presente do pai quando criança, havia pelo  menos três décadas, e a conservava intacta, usando-a diariamente. Era o único elo que mantinha com o saudoso passado. A infância fora boa, os primeiros 20 anos como adulto também, mas depois sua vida perdera o rumo. Sem emprego, ficou sem dinheiro, ouviu repetidos nãos de empresas, viveu de biscates por um tempo e, por fim, passou a mendigar nas ruas. Precisava comer e morar, mesmo que fosse numa espelunca, como a atual. Resolveu tomar um banho no chuveiro do vizinho; fazia frio, ainda estavam em outubro e a água quase não esquentou. Sofreu com os pingos gelados nas costas, lavou a cabeça e o corpo com sabão e se secou numa toalha velha, com alguns furos. Vestiu a velha roupa tremendo; aquele par estava limpo. Como era agradável o conforto de uma roupa lavada, por mais velha que fosse.

            Deixou o barraco de madeira, com oito metros quadrados e telhado de zinco, e se dirigiu à parada de ônibus. Tinha dois reais no bolso, o suficiente para pagar a passagem e ir para o Centro, onde passaria o dia a pedir dinheiro em sinaleiras. Era quarta-feira, havia um clássico na cidade àquela noite, o que significava tranqüilidade. Quando os policiais tinham uma tarefa mais importante, não importunavam os mendigos. No ônibus, tentava imaginar como seria o seu dia. Será que garantiria o suficiente para comprar comida e juntar um extra para o aluguel? A espelunca em que dormia era alugada, pagava R$ 40 semanais por ela. Pelo menos não dormia na rua, como outros.

            Bob, esse era seu apelido de infância, desceu a duas quadras da última parada do ônibus. Dirigiu-se até a esquina e, antes de começar a pedir esmola, fez a costumeira prece. Agradeceu, primeiro, o pouco que havia ganho no dia anterior e pediu que Deus iluminasse aquele dia ensolarado. Fez o sinal da cruz, mas nenhum transeunte viu sua devoção, e começou a pedir um trocado assim que  o sinal ficou vermelho para os carros. Conseguiu dois reais – uma nota de um real e duas moedas de cinqüenta centavos. O dia começou bem, pensou.

            Na segunda vez que o sinal fechou, teve mais sorte. Um senhor, que guiava um Celta preto sujo, lhe deu uma nota de cinco reais.

            – Tive uma notícia espetacular. Quando saí de casa, prometi a mim mesmo que daria ao primeiro mendigo que encontrasse cinco reais. Pode pegar – disse o motorista.

            – Muito obrigado! Deus lhe ilumine a vida – desejou.

            Bob olhou o rosto do motorista do Celta, que arrancou assim que o sinal variou para verde. Era um sujeito loiro, olhos azuis,  sobrancelhas grandes e cabelos curtos. A barba estava rala, não fora feita havia uns três dias ou fora aparada com uma máquina de raspar cabelo. “O que terá ocorrido àquele sujeito?”, Bob se perguntou nos minutos seguintes. Mas a curiosidade sobre o estranho se evaporou à medida que coletava dinheiro. Depois de uma hora de trabalho, estava convicto de que aquele era o seu dia de sorte. Embolsara 90 reais, ou um real e cinqüenta centavos por segundo. Nunca ganhara 90 reais por dia; agora, ganhara a quantia em apenas uma hora. A sorte o deixou radiante.

            Quando o sino da Igreja tocou as doze badaladas, anunciando o meio-dia, Bob já tinha ganho mais de 300 reais; não sabia o valor exato porque não parara para contar as notas e moedas recolhidas. O cálculo era aproximado, mas com certeza eram mais de 300 reais.  Ficou mais 10 minutos na sinaleira e resolveu almoçar. Dirigiu-se para um restaurante que conhecia e, no caminho, encontrou um mendigo, a quem lhe deu o lanche que trazia no bolso do casaco. Comeu feijão com arroz, espaguete, carne de panela, salada e, de sobremesa, um pudim. A refeição, a primeira em um restaurante decente havia alguns anos, custou nove reais e 30 centavos, quantia paga com nove moedas de um real e três de dez centavos. Não conseguiu se lembrar a última vez em que pagara tanto por um almoço.

            Voltou à mesma esquina, a sua esquina da sorte, como definiu o cruzamento. A sorte continuou sua companheira nas horas que se seguiram. Não houve sinal vermelho em que não embolsasse algum dinheiro; às vezes, eram apenas moedas, outras vezes lhe davam notas de um ou dois reais. Um senhor, que dirigia uma BMW nova, abriu o vidro e lhe deu, pasmem!, dez reais. Quase não acreditou quando viu a nota rosa. Agradeceu ao homem e a Deus.

            Assim, trabalhou até as seis da tarde, quando as nuvens cobriam o céu e antecipavam o início da noite. Foi até um banheiro público, sempre olhando para os lados para ver se ninguém espreitava. Entrou e trancou a porta. Sentado no vaso, contou aquele monte de notas, até chegar à cifra de 846 reais. Com as moedas, que forravam o seu bolso e a pochete que trazia no dorso, com certeza ganhara mais de mil reais. Aquele dinheiro daria para dois meses, pelo menos. Talvez até três meses.

            Deixou o banheiro público radiante, sem saber o que fazer. A razão o mandava ir para casa, não convinha andar com todo aquele dinheiro no bolso; era um mendigo, todo sabiam, mas por vezes garotos vestindo tênis Nike e calças e camisetas da moda assaltavam mendigos, em busca de alguns trocados para beber em algum bar ou comprar drogas. Decidiu, porém, que aquela noite merecia algo diferente, algo especial. Entrou em uma loja de 1,99 e comprou uma espécie de pochete de pano, daquelas para guardar dinheiro por debaixo da roupa. Voltou ao banheiro, guardou todas as notas lá e tomou a direção do estádio. Fazia mais de 20 anos que não assistia ao seu time.

            Tal como o dia, a noite foi inesquecível. Vibrou feito criança com cada um dos quatro gols de sua equipe, na histórica goleada de 4 a 1 sobre o arquirrival. Deus, decidiu enquanto saia do estádio ao término da partida, lhe dera um presente especial naquele dia. Nunca ganhara tanto dinheiro, nem quando tinha carteira assinada, e jamais comemorara uma vitória como aquela. Eufórico, dirigiu-se à parada e pegou o ônibus. Pensou em ir de táxi, mas se lembrou que os motoristas não entravam na vila depois das oito da noite.

            Faltando um minuto para a meia-noite, desceu do ônibus no bairro. Caminhou com cuidado por aquelas ruas silenciosas e mal-iluminadas. Estava feliz, inebriado pelo dia que tivera. Pensava no que poderia fazer, talvez deixasse de ser mendigo.

            Assim, absorto, não viu dois vultos se aproximarem por trás e lhe darem um golpe na cabeça. Caiu no chão, machucando o rosto. O nariz doeu, mas as mãos alheias em seus bolsos doíam mais. Ouviu os dois conversando, reclamando que o velho só tinha moedas. Sentiu, de repente, algo pontiagudo furar suas costas. Lentamente, tudo ficou escuro.

            ***

            O jornal da cidade trouxe apenas uma nota sucinta, dois dias depois. Dizia o texto, com o título “Mendigo é morto”:

            “Um mendigo foi encontrado morto na Vila Socorro na manhã de ontem, vítima de uma facada nas costas. O corpo, levado ao Instituto Médico Legal, ainda não foi reconhecido. A polícia apurou que o mendigo se chamava Bob e morava num pequeno casebre alugado. O dono do imóvel disse desconhecer a identidade completa de Bob. A polícia trabalha com a hipótese de latrocínio, já que nenhum dinheiro foi encontrado com o mendigo, que deve ser enterrado como indigente amanhã à tarde, no Cemitério Público Municipal, caso ninguém reclame o corpo.”

***

E então, o que acharam?